domingo, 29 de dezembro de 2019


Em memória de minha mãe.

Hoje, dia 30 de Dezembro, faria 97 anos minha mãe.

Recordo-a como minha mãe, evidentemente, mas também como uma senhora com um enorme coração, simples e dada a todas as causas que fossem de entre ajuda, solidárias, que pensava nos outros sempre muito antes de pensar nela própria.

Recordo  tantos dias que, miúdo, passei sentado num canto da secretaria do seu gabinete na Delegação de Saúde de Viseu.
As inúmeras vezes em que a vi fazer passar pelos intervalos da chuva, se a decisão estivesse a ser por algum motivo de exagero borocrático, difícil,  os  atestados, os então chamados "Boletins de Sanidade", necessários a tanta gente humilde, sem posses, que apenas precisava do atestado  ou do Boletim para poder ir vender no mercado as coisitas que ia produzindo num pequeno quintal, numa leira ou num lameiro lá na aldeia, na altura longe, porque tudo ficava longe nessa altura, para assegurar um precário sustento vendendo-as no mercado.  E tantos selos fiscais eu mesmo fui comprar á Papelaria Costa ou ao Lagarto,  estampilhas fiscais que minha mãe pagava para pessoas que iam em busca do boletim milagroso para poderem vender na praça ou empregar-se num tasco, num restaurante, numa qualquer coisa, sempre bom, fosse onde fosse.

Sempre solidária, em todas as causas. Até  ao ano em que faleceu, e já lá vão doze, foi voluntária da Liga do Cancr, fazia todas as recolhas de fundos, por vezes já sem poder e eu a dizer-lhe para não o fazer. Mas sempre foi, mesmo doente teimava e ia onde tinha pessoas e empresas que por ela esperavam naquelas alturas e era bem sucedida.

Era eu miúdo, na escola primária, e descobrimos que o Armando, meu colega, órfão de pais,  vivia num quartito por cima da loja do burro da senhora que lhe deu casa e mesa. Mas, gente com muitas dificuldades, o Armando ia para a Escola da Avenida, que frequentávamos, sem tomar fosse o que fosse em casa. Sem o dejejum ! Para além de um pão com manteiga no meu farnel para o intervalo da manhã, passou a ir sempre, mas sempre, um pequeno termo com café com leite e um pão com qualquer coisa dentro, manteiga ou marmelada ou queijo para o Armando. Até deixarmos a escola. E não se fizeram na altura  quaisquer publicidades nem  "outdoors", nunca.

Poderia escrever paginas, muitas,  de coisas  como estas, simples mas com muito significado, sobre minha mãe.

Correndo  o risco de pisar os terrenos da imodéstia, creio mesmo que a cidade que a viu nascer e morrer a poderia alguma vez ter mencionado como cidadã exemplar e de honra nesse contexto das causas solidarias e de cidadania.  O que era e ainda hoje é bem conhecido e reconhecido por uma parte muito significativa das pessoas que a conheceram. Por vezes, ainda agora, me sinto quase envergonhado com os elogios que fazem a minha mãe, quando alguém me reconhece como seu filho. Por me dar uma responsabilidade que, muitas vezes, me causa embaraço por não me ver à altura de o honrar como deveria. Nunca pensou nela própria. Quando  nos rasgaram a quinta da Aguieira e fizeram uma avenida nova em frente da moradia de meus pais, alguém sugeriu que passasse a ter o seu nome. Logo retorquiu dizendo que  só faria sentido se fosse  o nome do filho que, esse, sim, tinha prestigiado Viseu lá pelo mundo fora! Tudo se resolveu bem pois nem um nem outro foram lembrados.

Tenho um carinho muito especial pela foto  inicial. Minha mãe muito nova e bonita comigo ao colo sentada num muro  ali perto das vinhas e do tanque na quinta da Aguieira.
Simples, autentica, simboliza com muita propriedade o que se costuma designar Amor de Mãe!

Fez de mim Bébé  Nestlé, logo no meu primeiro anito. Enviavam-se os rotulos da papa Nestlé, uma foto, o juri reunia tudo, deliberava e ...  enviou para Viseu  o veredicto e o meu Diploma de   "Bébé Nestlé"  desse ano.


Ia comigo ao Restelo  ver jogar o meu Belenenses e vibrava com as vitorias. chegou a ir aos balneários, subir ao relvado e admirar o Estadio. Sabia que me dava felicidade com isso. No entanto, sei que o seu clube "de solteira"  era  o Sporting. Depois, o seu clube, o seu gosto, a sua vida, passaram a ser tudo o que eu gostasse também.
No Restelo, no Camarote, comigo

No Camarote presidencial, no Restelo, com meu pai, com o Francisco Nicholson e o Fernando  Ferrão, num intervalo de jogo.


Sinto agora como se os meus pés tivessem raizes, a sair por baixo, muitas, centenas delas, como as heras que chegam a todo  o lado. E, essas raizes que me saem dos pés, estão todas espalhadas e ligadas á Aguieira, á moradia de meus pais, aos terrenos, ao jardim que sempre foi o jardim e as flores de minha mãe. A tudo aquilo. Agora, mesmo sem a razão para as visitas frequentes ao meu pai, continuo a querer sempre ir a Viseu, á Aguieira, à Quinta, ás terras, ..., lá.

Que sempre de cada vez que lá vou, entro no jazigo, levo umas flores, toco na urna de minha mãe, como quem bate á porta, a acordo-la. Olá, digo-lhe sempre, irracionalmente.
Vem-me aos olhos a ultima imagem, como ficou quando selaram a urna. O fato que tinha, o mesmo de uma fotografia que olho no jazigo. E isto não é sentimento tétrico, masoquista. É mesmo de muita saudade mas de alegria.

Digo-lhe adeus em pensamento ou, para meu contentamento embora irracional, faço-o mesmo em palavras.
O mesmo agora para meu pai, para as suas cinzas.

A vida é realmente muito curta, vista nesta perspectiva  que é, essencialmente, de saudade.


Num dos últimos natais e seu aniversário, em Lisboa, em minha casa-

 O seu jardim na Aguieira

 Um outro dia 30 de Dezembro, aniversário, festejado em minha casa, em Lisboa

Agosto de 2007. Em Setembro, deixar-nos-ia.

Natal de 2003, ainda com minha sogra e meu pai, em minha casa.
Todos eles, já partiram-

 O seu lugar na mesa em minha casa, sempre foi ali.

Foi quem mais se preocupou comigo, quem mais sofreu e sentiu
felicidade por mim, quem mais me cuidou de qualquer constipação,
gripe ou uma unha ou borbulha que fosse ! Foi quem mais gostou de
me ver feliz, quem mais sorriu para mim  e comigo!
Foi quem me ensinou a dizer, a andar e a sentir.
A sentir foi importante pois ainda hoje sinto como sentia minha mãe!
Afinal, ensinou-me tudo ou quase tudo, mesmo!
Se hoje respiro e penso, foi porque ela, minha mãe, me deu essa
possibilidade, deu-me a Vida!

Saudade imensa, querida mãe.
Não é possível andar com o tempo para trás. Mas é possível andar com
tudo o que vem detrás  no pensamento e no sentimento,  para onde e quando se queira.

E, hoje e muitas vezes ando com o que penso, com o que sentia nos
dias em que me refugiava no colo de minha mãe, nos sues abraços,
afectos e mimos.
Bem-haja, por tudo isso.
Um grande beijo e vamos continuar juntos, como sempre. 

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